O (Um) Futebol como um Sistema complexo - Uma abordagem ao “jogar” a partir da compreensão da teoria
- Renan Mendes
- 10 de mai. de 2015
- 9 min de leitura
“Um cartesiano olharia para uma árvore e a dissecaria, mas ai ele jamais entenderia a natureza da árvore. Um pensador de sistemas veria as trocas sazonais entre a árvore e a terra, entre a terra e o céu. (...) Um pensador de sistemas veria a vida da árvore somente em relação à vida de toda a floresta, como o habitat de pássaros, o lar de insetos...”
Trecho do filme “Ponto de Mutação” (1999), dirigido por Bernt Capra, baseado no livro de mesmo título, do autor Fritjof Capra.
Na década de 50, Ludwig Von Bertalanffy elaborou a Teoria Geral dos Sistemas, onde um sistema pode ser definido como sendo uma “associação combinatória de elementos diferentes” (Morin, 2011, pg. 19). Ou seja, um sistema é um “todo” composto pela “relação” dos seus constituintes, e não pela “soma” dos mesmos (este conceito será abordado no decorrer do texto).
Um sistema é complexo justamente devido a quantidade de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades. A complexidade compreende também incertezas, indeterminações e fenômenos aleatórios (Morin, 2011). Em outras palavras, a complexidade “é a incerteza no seio de sistemas ricamente organizados” (p. 35).
Desta forma, não será a equipe um sistema? (Gomes, 2008). É no aprofundamento a esta questão que se encontra a base da nossa reflexão no presente texto. A equipe e o seu “jogar” como um Sistema Complexo.
A equipe como um sistema aberto
Um sistema fechado, como uma pedra por exemplo, está em estado de equilíbrio, pois não há trocas de matéria/energia com o exterior. Por outro lado, um sistema aberto, como a constância da chama de uma vela ou a constância do meio interno de uma célula, não está absolutamente ligado a tal equilíbrio, pelo contrário, há desequilíbrio no fluxo energético que os alimenta e, sem esse fluxo, haveria desordem organizacional levando rapidamente o sistema ao definhamento (Morin, 2011).
Realizando uma transferência de conceitos para o futebol, pode-se dizer que uma equipe opera como um sistema aberto na medida em que, no decorrer de uma partida, ocorrem desequilíbrios na sua organização coletiva, que acontecem devido às características do contexto (jogo) em que está inserida (imprevisibilidade, aleatoriedade, sensibilidade as condições iniciais...), sendo que estas propriedades emergem, principalmente, de uma relação de cooperação com os companheiros e de oposição aos adversários (figura abaixo).

Neste sentido, a equipe deve tentar manter a sua estabilidade organizacional através do gerenciamento da instabilidade emergente. Deve procurar manter o equilíbrio identificador da equipe (respeito pelos princípios de jogo; identidade comportamental) por meio da permeabilidade aos desequilíbrios contextuais. É através desta troca de informações com o ambiente externo que o sistema buscará meios para estabelecer novos e superiores níveis de organização.
Sendo assim, “[...] a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, não apenas no próprio sistema, mas também na sua relação com o meio ambiente, e que essa relação não é uma simples dependência, ela é constitutiva do sistema” (Morin, 2011, p. 22).
“Assim acontece não apenas [...] com a chama de uma vela, mas com nossos organismos, (jogadores e o “jogar” de uma equipe, por exemplo) onde nossas moléculas e nossas células (ações/comportamentos de um jogador/setor da equipe, por exemplo) renovam-se sem cessar, enquanto o conjunto (o “jogar” /modelo de jogo) permanece aparentemente estável [...]. Por um lado, o sistema deve se fechar ao mundo exterior a fim de manter suas estruturas e seu meio interior que, não fosse isso, se desintegraria. Mas é sua abertura que permite esse fechamento” (Morin, 2011, p. 21).
Portanto, o sistema auto-organizador (equipe; “jogar”) se destaca no meio ambiente e dele se distingue, por sua autonomia e individualidade, ele se liga ainda mais pelo aumento da abertura e da troca que acompanha todo o processo de complexidade: ele é auto-eco-organizador. Ele precisa de alimentos, de matéria/energia, mas também de informação e de ordem. O meio ambiente está no interior dele, jogando um papel de co-organizador. O sistema auto-eco-organizador não pode bastar-se a si mesmo, ele só pode ser inteiramente lógico se abarcar em si o ambiente externo (Morin, 2011).
Segundo Gomes (2008), os conceitos fundamentais que caracterizam os sistemas são: a globalidade, a interação, a organização e a finalidade. Em seguida, abordaremos cada um deles.
A globalidade:
O conceito de globalidade assenta em uma das virtudes do pensamento sistêmico, citadas por Morin (2011), onde a principal é a de “ter posto no centro da teoria, com a noção de sistema, [...], uma unidade complexa, um ‘todo’ que não se reduz à ‘soma’ de suas partes constitutivas” (p. 20). Deste modo, um sistema expressa um conjunto de propriedades que os seus elementos não apresentam isoladamente ou num outro sistema. Isto posto, entendemos a equipe como um sistema que vale pelo seu “todo”, em virtude das interações dos seus jogadores, que fazem com que a dinâmica do jogo apresente certas característica (Gomes, 2008).
Assim, as propriedades de uma equipe/sistema revelam-se a partir da relação dos seus jogadores/constituintes e não pela simples “soma de valores” individuais. Segundo esta ideia, as interações estabelecidas dentro de uma equipe podem partir e uma relação jogador/jogador, mas também se estendem para relações grupais (entre os zagueiros e o volante, por exemplo), setoriais (entre os jogadores do setor defensivo, por exemplo), inter-setoriais (entre os jogadores do setor defensivo e os jogadores do setor de meio campo, por exemplo), até se chegar às propriedades reveladas pela totalidade, representada pelo “jogar” da equipe, a um nível macro.
A fim de esclarecer esta ideia, utilizaremos um exemplo dado por Gomes (2008, p. 22), que nos ajudará a perceber melhor a lógica inerente a este conceito:
“Imaginemos um bolo que se assume numa totalidade constituída por vários ingredientes como o açúcar, ovos, entre outros. Contudo, o bolo é algo diferente dos seus ingredientes que deixam de ser partes isoladas para se assumirem numa totalidade com os demais e adquirir uma nova expressão. Assim, as partes do bolo não são o açúcar ou os ovos mas as fatias e as migalhas do próprio bolo e por isso, se queremos conhecer a totalidade através das suas partes não podemos procurar nos ingredientes porque estes contextualizam-se nas relações que estabelecem com os demais para ganhar uma forma própria. Assume-se por isso num colectivo cujas partes têm de ser perspectivadas à luz do mesmo”.
Sendo assim, a dinâmica individual adquire um sentido quando contextualizado numa unidade coletiva, onde a relação entre as partes (jogador<es>/jogador<es>) e entre as partes e o todo (jogador<es>/equipe) são de fundamental importância. Assim, é possível perceber com o que foi referido, que a globalidade sistêmica reforça a necessidade do entendimento do conceito de interação, conceito que será abordado em seguida.
Interação:
Dentro da perspectiva de sistemas, os comportamentos dos jogadores deixam de ser analisados como uma ação para ser reconhecida como uma INTERação (Gomes, 2008). Com base nesta premissa, segundo a autora, as tomadas de decisões dos jogadores têm repercussões no contexto onde estão inseridos, assim, a decisão do jogador influencia na dinâmica das relações com os seus colegas e adversários dentro do jogo.
Deste modo, não estaria aqui uma das justificativas (como se já não houvesse outras) para se ter um Modelo de Jogo para equipe? Tratas-e de um “projeto coletivo de jogo”, como refere Guilherme Oliveira (2004). Em outras palavras, um conjunto de princípios de InterAção que darão um sentido as decisões dos jogadores, ou seja, um conjunto de intencionalidades pré-estabelecidas e compartilhadas que farão com que todos os jogadores durante o jogo, pensem a mesma coisa ao mesmo tempo, antecipando-se e coordenando-se a ação do companheiro, expressando-se numa relação de harmonia e fluidez coletiva.

Conforme referido anteriormente, a natureza do jogo caracteriza-se pela dinâmica das relações de cooperação entre os companheiros de equipe e de oposição aos jogadores adversários. Também foi referido que as relações estabelecidas entre os jogadores só fazem sentido dentro de uma ideia coletiva de jogo, o “jogar” da equipe.
Entendido desta forma, a globalidade é o que constitui a Organização coletiva e as interações dos jogadores são as partes que constituem a globalidade. Portanto, as relações individuais, grupais, setoriais e inter-setoriais são ordenadas por uma Organização (Gomes, 2008).
Organização:
Baseado no conceito de sistema aberto, vimos que “as leis de organização da vida não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio, recuperado ou compensado, de dinamismo estabilizado” (Morin, 2011, p. 22). E segundo o próprio autor, as características do sistema resultam da forma como se organizam os seus elementos. Por isso que a definição de sistema contempla dois conceitos fundamentais: a interação e a organização (Morin, 1982, apud Gomes, 2008).
Segundo esta perspectiva, a organização dos jogadores configura as interações da equipe, isso faz com que revelem determinadas regularidades que identificam esta equipe (Gomes, 2008).
Neste momento, faz todo sentido falarmos num Modelo de Jogo. Trata-se de uma forma de jogar característica da equipe, que é constituído pelas interações dos jogadores no interior do sistema (equipe). Essas interações revelam certas regularidades ou intencionalidades (princípios de jogo; princípios de InterAção) e é este conjunto de regularidades que da luz a uma Identidade comportamental (conjunto de princípios; Modelo de Jogo).
Seguindo nesta linha de pensamento, Leitão (2009) refere que um sistema possui estruturas e funções que se relacionam de forma interdependente. O entendimento da organização de um sistema esta na compreensão das estruturas e funções que o compõem, assim como da interação entre elas (Leitão, 2009). Portanto, a organização do jogar parte de uma estrutura que condiciona e se relaciona a uma dada dinâmica ou funcionalidade (Gomes, 2008). Neste ponto, faz-se necessário falar sobre os dois princípios que caracterizam uma organização: a estrutura e a funcionalidade.
Organização estrutural e funcional:
De acordo com Morin, a estrutura representa o lado rígido e estático do sistema (1982, apud Gomes, 2008). Em analogia ao jogar, este conceito esta diretamente relacionado com o “sistema de jogo” (esquema tático) da equipe. Entretanto, como já pronunciado anteriormente, o jogar é um fenômeno que emerge da dinâmica proveniente das interações no interior do sistema.
A fim de esclarecer melhor esta ideia, Gomes (2008) refere que o conceito de organização nos sistemas vivos não se reduz a regras estruturais, ele compreende um lado mais ativo. Sendo assim, a dinâmica do jogo traduz-se numa funcionalidade organizada a partir desta estrutura.
Este ponto do texto nos abre a possibilidade de questionar sobre a real importância do esquema tático dentro de um projeto de jogo coletivo. Principalmente aqui no Brasil, onde o esquema tático é muitas vezes encarado pelos “entendidos” como um elemento extremamente decisivo no resultado de uma partida. Será que esta importância realmente se justifica? Escrevi aqui mesmo neste site, uma coluna que trata de forma mais profunda este assunto (Este texto pode ser encontrado em: http://gepafestudos.wix.com/futebol#!A-Organização-Tática-Muito-mais-do-que-um-esquema-uma-Cultura/c1mbt/68A46011-45CE-4D14-99DA-48FEB362A066).
Portanto, a organização do jogo parte do “sistema de jogo”, mas vai mais além do que isso, pois uma mesma estrutura pode gerar dinâmicas diferentes, ou seja, um jogar diferente (Gomes, 2008).
Observando jogos de diversas equipes ao redor do mundo, é possível entender o que foi dito no parágrafo anterior. É fácil notar que existem vários times a jogar com o mesmo “sistema tático”, ou seja, com a mesma estrutura. Mas muitas vezes, essas mesmas equipes jogam de maneiras totalmente diferente uma das outras. Isso acontece porque é a organização das relações dos jogadores dentro equipe é que são díspares, ou seja, é a organização funcional que as diferencia.
Conforme Gomes (2008), o sistema de jogo é o ponto de partida na configuração da dinâmica do jogar, mas a funcionalidade compreende as características dos jogadores e os princípios de interAção em cada momento de jogo.
Finalidade:
Como já foi referido diversas vezes, a dinâmica de um sistema resulta das interações dos seus elementos. Entretanto, estas interações são condicionadas pelos objetivos perseguidos, portanto, é a finalidade que configura, orienta e da sentido à evolução do sistema (Gomes, 2008).
Deste modo, a Finalidade traduz-se na forma como se quer jogar. A finalidade nada mais é do que a ideia de jogo que o treinador objetiva para sua equipe e que se desenvolve ao longo do processo (Gomes, 2008). Portanto, trata-se de um modelo (de jogo) que vai configurar as interações individuais, grupais, setoriais e inter-setoriais do sistema (equipe).
Para Castelo (2007, apud Leitão, 2009, p. 108): “o modelo de jogo deve ser compreendido como "modelo de organização de jogo” e se refere ao conjunto de orientações e regras de ação inerentes a uma organização de jogo. Segundo ele o modelo de organização de jogo constitui a identidade de jogo da equipe e é da integração estrutural, funcional e relacional dos elementos que a constituem que o modelo se fortalece. É a partir do modelo de jogo que a preparação da equipe, o desenvolvimento do jogador e a análise real do desempenho surgem”.
Destarte, a partir das ideias de jogo do treinador (plano conceptual ou ideológico) surge o Modelo de jogo (plano operacional ou prático), que será determinante na configuração do jogar da equipe. Em outras palavras, as relações e InterAções no seio da equipe são configuradas a partir de princípios de ação que conjuntamente, revelarão uma Organização Funcional, isto em congruência com o desenvolvimento de uma Organização Estrutural (esquema tático), a qual servirá de sustentação a dinâmica pretendida. Todos estes aspectos relacionados de forma coordenada e harmônica se manifestarão de forma intencional, com a Finalidade de expressar o Modelo de Jogo da equipe.

E para finalizar... Mais questões!
Muitas ideias e conceitos foram abordados aqui, mas estamos muito longe de chegar a um final! Ainda há muitas questões a serem feitas. O que é o Modelo de Jogo? Como ele é construído e desenvolvido? O que devo treinar para ser congruente com minhas ideias? Quais exercícios utilizar para incorporar nos meus jogadores os princípios desejados? Qual metodologia de treinamento utilizar na operacionalização destas minhas ideias? Como gerir a relação esforço-desempenho?...
A busca pelo conhecimento é um caminho que se faz fazendo! Pois a verdade é que... “Ninguém tem necessidade daquilo que desconhece!” (Vitor Frade).
Abraço e até a próxima!
REFERÊNCIAS
Casarin, R. V., y Oliveira, R. Periodização Táctica: princípios estruturantes e erros metodológicos na sua aplicação no futebol. (2010). EFDeportes – Revista Digital, 15 (144). Recuperado de: http://www.efdeportes.com/efd144/periodizacao-tactica-sua-aplicacao-no-futebol.htm
Gomes, M. S. (2008). O desenvolvimento do jogar segundo a Periodização Tática. Espanha: MCsports.
Leitão, R. A. A. O jogo de futebol: investigação de sua estrutura, de seus modelos e da inteligência de jogo, do ponto de vista da complexidade. (2009). Campinas: Universidade Estadual de Campinas.
Morin, E.( 2011). Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina.
Oliveira, J. G. G. Conhecimento Específico em Futebol. (2004). Porto: Universidade do Porto.
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